sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Sacolejo do Ônibus de Bertioga

Era mais uma tarde de sexta-feira e Ane dormia levemente na poltrona 22, corredor, do ônibus que saíra de SP rumo à Bertioga. Era uma tarde quente, de belo pôr do sol. Apesar do vai e vem da viagem, das freadas repentinas, seu sono era tranquilo. Acumulava todo o desgaste da semana. Em toda parada ela escutava os freios a pressão do ônibus, o abrir e fechar da porta e o caminhar dos passageiros no corredor em busca de seus respectivos assentos. Seus olhos se entreabriam levemente, de maneira instintiva, fazendo com que ela tivesse uma vista embaçada do que ocorria. Sua cabeça estava levemente inclinada para a direita, lhe proporcionando a visão de todo o corredor do ônibus, assim como da estrada, que via ao fundo através do para-brisa do ônibus. Era uma espécies de “luz no fim do túnel”. Ela jogava o jogo do sono vs o sacolejo da viagem. Mas na sexta, tudo era válido. A estrada a fazia muito bem. E entre freadas e aceleradas, o sono vencia a maioria das batalhas. E com ele vinham fortes sonhos. Imagens reais da sua semana: trabalho, e-mails, reuniões, planilhas e acontecimentos isolados ganhavam outra dimensão. E o ônibus acelera estrada adentro, deixando São Paulo pra trás. As paradas diminuíram e o sono consolidou sua vitória. Ane agora respira profundamente. Deixa todas as mazelas da dura semana pra trás. Quanto mais o ônibus anda, mais ela relaxa em seu profundo sono. Sua cabeça vai para um lado e para o outro, acompanhando as curvas da estrada. Seus pés ganham o corredor, buscando mais conforto. Os braços já não estão cruzados, e sim soltos e leves em seu colo. Ela inspira…respira... profundamente... Não há sacolejo que a perturbe. Quando de repente, uma voz penetra seu sono: “com licença. 21, janela.” exclama um passageiro, lhe mostrando seu bilhete e dando-lhe um tremendo cutucão no ombro direito. Dessa vez seus olhos abriram rapidamente, de uma só vez. O rapaz estava pedindo passagem para a poltrona ao seu lado. Apesar de todo mal humor, de quem acabara de ser despertada do melhor sono de todos os tempos, Ane se levanta, calada, com a expressão neutra, e dá passagem ao rapaz.

O passageiro guardou sua bagagem, sentou-se em seu lugar e disse meio sem jeito: “obrigado.”. Ane, em pé e com os dois braços erguidos, segurando no apoio do ônibus, discretamente observou o observou de costas no caminho até a poltrona 21. Sua expressão externa permaneceu neutra, mas por dentro seus pensamentos perdoaram completamente o pobre moço. Ela sentiu um arrepio dos pés à cabeça. Gostou do físico do rapaz do cutucão. Pra não dar bandeira, sentou-se rapidamente, se ajeitou na poltrona e respirou fundo. O arrepio no corpo era um fato. Com a cabeça reta, moveu os olhos discretamente para a esquerda. Ele cruza os braços e Ane retorna à sua posição original. Silêncio. Ele olha vagamente pela janela e observa o entardecer. Por um momento fica aquele espaço para perguntas inúteis de alguma das partes: “está quente hoje, né?” ou “desculpe-me por te acordar...”. Mas o silêncio prevalece. Apenas o ronco do motor ao fundo. Outras possibilidades de diálogo inútil são avaliadas por ambos, em seus pensamentos: “Tudo bem?”ou “você é de SP ou de Bertioga?”, para logo depois o famoso “o que você faz? Trabalha com o que?”. Mas nada acontece. Silêncio, silêncio e mais silêncio... E menos freadas. A estrada já não embala o sono de Ane. A nova cia a deixou inquieta, se coçando por dentro. O sono profundo se torna impossível. Mesmo assim ela fecha os olhos. Já que não tinha o diálogo, ela precisava ser coerente na sua ação física. E de olhos quase fechados, com a cabeça levemente virada para a esquerda, observa o rapaz com visão periférica. Ele mantém os olhos fixos na janela, contemplando o entardecer. Compenetrado, parecia não a perceber ali. Ane então fecha completamente os olhos e tenta dormir. Mas era realmente impossível. O estado relaxado de outrora se transformou em uma inquietação completa. Sem freadas para paradas, as curvas começam a ficar mais intensas. O vai e vem do ônibus ganhava nova dimensão. Prá lá e pra cáVai e vem...Era o sacolejo de volta, e com força total. O rapaz, ainda compenetrado, observa o sol se pondo. Ane então, num rompante instintivo, se embalou no sacolejo do ônibus e começou a acompanhar suas curvas com o movimento de cabeça. Curva pra esquerda, cabeça pra direita. Curva pra direita, cabeça pra esquerda. E assim foi. De maneira consciente, se fez de inconsciente. Estabeleceu tal movimento, simulando o verdadeiro sono profundo de minutos antes. Até que veio uma boa curva pra direita, e sua cabeça descontroladamente,  mas de forma controlada por ela, encosta no ombro do rapaz. Ela respira fundo, sente o impacto e analisa a receptividade. Mas logo veio uma curva oposta, ainda mais forte, que a levou de volta. “Curva maldita!”, lamenta em seu pensamento. Mas ela tinha experiência. Anos de estrada. Era praticamente uma veterana no caminho SP – Bertioga. Sabia que o sacolejo não a deixaria na mão. E logo veio outra curva a seu favor e...pimba! Bochecha esquerda no ombro direito do rapaz: encaixe perfeito! Se acomodou de vez. Fez um movimento típico de quem teve o sono quase interrompido. Algo do tipo “ai...quase acordei...mas continuo a dormir profundamente...”. Fez do ombro do rapaz um verdadeiro travesseiro de plumas de ganso. E ali ficou. Foi perseverante e suportou o sacolejo inverso. Percebeu que o rapaz não estava se importando. Mas também não correspondia ao movimento. “Será que ele percebeu que estou fingindo ou ele realmente acredita que estou dormindo?”, analisa. Mas já não importava. A próxima etapa estava por vir. Segurava o sacolejo inverso e se aprofundava “na pluma de ganso”. Sua cabeça estava praticamente encaixada no pescoço do rapaz, no formato côncavo de seu ombro. Parecia mais duas peças de lego. A respiração profunda já ia em direção ao peito dele. E tome sacolejo. Ane então, ainda no seu sono simulado, levou sua mão direita ao próprio rosto para uma coçada na bochecha. No retorno do movimento, a deixou cair na perna direita do rapaz, mas de maneira despretensiosa, sem tônus. Como fazem as pessoas quando descansam suas mãos durante um sono comum. Silêncio. Apreensão. O rapaz sentiu o movimento e não fez nada. Absolutamente nada. Ficou imóvel. Foi o sinal que ela precisava para agir. Agora sem análises ou delongas. No embalo do sacolejo, localizou o zíper do rapaz e abriu sua calça sem dificuldades. Quando sua mão entrou na cueca dele, ela percebeu que ele estava consciente de todos os movimentos silenciosos desde o início. Era um momento perfeito, de cumplicidade. Transição do dia pra noite. Com a cabeça encostada no peito dele, entreabriu os olhos e viu o que tinha nas mãos. Imediatamente sua boca se abriu em completa admiração, com um ligeiro suspiro. Sentia o sacolejo, a plenitude, o silêncio que antecede a glória. E num rompante, deixou sua cabeça escorregar peito abaixo e...PIMBA! Sim. Isso mesmo. Ela caiu de boca no pinto do rapaz. Sem lhe dizer uma só palavra. O rapaz, receoso, olhou para os lados e sem acreditar no que acontecia. Ergueu o braço esquerdo, passou a mão no cabelo e depois puxou a alavanca para descer sua poltrona. Ane, no embalo do sacolejo, ali ficou durante o restante da viagem. Estava em seu playground preferido.

Na chegada a Bertioga os dois desceram, ainda em silêncio. Retiraram suas bagagens e, ali mesmo, em pé, no terminal de desembarque, tentavam mais uma vez iniciar um diálogo inútil: “viagem rápida, né?“ ou “você pega sempre esse ônibus?”. Mas o silêncio prevaleceu de novo. Só que dessa vez com os dois se olhando nos olhos, profundamente. Mistura de vergonha com sorriso. De timidez com promiscuidade. Ane então, num rompante, quebra a imobilidade. Abre sua bolsa, saca um pedaço de papel cor-de-rosa, uma caneta, e começa a escrever algo. Faz uma pausa dramática, olha para o rapaz, e dá uma tremenda gargalhada de se ouvir em todo o terminal rodoviário. Termina o bilhete, olha nos olhos do rapaz e diz, com um sorriso bem sem vergonha: “Oi! Meu nome é Ane e eu adoro viajar pra Bertioga!”. O rapaz esboça uma resposta, mas ela lhe dá as costas rapidamente e vai embora. Enquanto Ane sumia no meio da multidão, ele pensava, de boca aberta, na loucura que acabara de viver. Havia sido a viagem mais atípica e prazerosa da sua vida. Mal acreditava que a veria novamente. Respirou fundo, sorriu levemente. Não era só prazer. Era amor. Amor verdadeiro, daqueles de alma!  Foi então checar o bilhete. Quando o abriu, o sorriso encolheu: não havia telefone, tão pouco endereço. Apenas um singelo coração desenhado, com uma marcação dentro: 29º.


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