quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Crepúsculo e o Neném

Quando o relógio apitava, as 17h30, ele abria o berreiro. Toda santa tarde o neném chorava muito. Meio sem explicação, pois mamara o dia todo, estava limpinho, com a fralda seca e com sorrisos diversos no rosto. Sua mamãe não compreendia o motivo. Era muito zelosa e conhecia cada dia mais a criança. Os médicos não conseguiam explicar o fenômeno: não era febre nem cólica, sono ou tão pouco fome. Os doutores se confundiam e contradiziam nas explicações. O Neném, por sua vez, seguia sua rotina. Dormia muito bem para uma criança de 3 meses. Praticamente toda a noite. Acordava cedo com o nascer do sol, mamava, brincava, cochilava, mamava de novo, tomava seu banho de sol diário, sorria, resmungava, emitia sons típicos com a boca, sujava fraldas, babava, mamava outra vez, etc etc e etc. Cumpria seu papel de cidadão neném. Mas quando o relógio marcava 17h30 era um Deus nos acuda. O bico pré choro se armava em sua face e o berro era intenso, a ser escutado por toda vizinhança. De tão forte e absoluto, o neném passou a ser conhecido em todo o bairro. Toda a Vila funcionava na expectativa de ouvir o seu berreiro. Era uma espécie de alarme das 5 e meia da tarde. Pautava o cotidiano das pessoas e também o funcionamento do comércio local. A fama do neném era tamanha que intrigava a vizinhança, mas também encantava a todos. Escutar o choro do neném era uma alívio, um sinal de que as coisas estavam bem. De que o dia ia acabar, que o pão da tarde seria entregue, que o vento continuaria soprando e que a vida seria levada adiante. 

Mas a Mamãe, zelosa que era, continuava mais intrigada do que encantada. Numa tarde sua campainha tocou. Era uma misteriosa moradora do bairro, conhecida por todos como a Senhora Que Não Falava. Tinha olhos bem azuis e longos cabelos brancos. A pele clara, porém bem corada pelo sol. Vestia sempre uma bata branca, impecável, e não dizia uma só palavra. Era tida por todos como muda e surda. A Mamãe, de dentro de casa, com a cabeça para a fora da porta, meio sem saber o que fazer, se falava ou fazia gestos, acabou por dizer um "boa tarde" meio sem jeito. "Em que posso ajudar?", completou. A Senhora permaneceu em silêncio, olhando fixamente para a Mamãe. Ela, por sua vez, consultou o relógio e olhou para trás. Constatou que já eram quase 5 e meia, a hora do berreiro. Ela precisava estar pronta para acudir o neném. Quando voltou o olhar para a senhora deu de cara com um suave sorriso. Então, após uma leve respiração, a Senhora Que Não Falava, falou: "Crepúsculo". A Mamãe nada entendeu. Ficou chocada e pensou freneticamente: "Então ela fala! Mas não era muda? E que diabos ela quer dizer com crepúsculo ao pé da minha porta?". A Senhora, gentilmente, continuou: "É o crepúsculo. Ele sofre de crepúsculo vespertino". "Você está falando do meu neném?" "Sim. O seu neném sofre de crepúsculo vespertino”, repetiu. Tudo parecia estranho para a Mamãe. A conversa não tinha pé nem cabeça. O horário do berreiro se aproximava. A Senhora Que Não Falava estava ali, na porta da sua casa, não só sorrindo, mas falando! Como assim? Ela não falava e agora está falando? Além do mais estava falando coisas sem sentido. Até onde ela sabia, não existia nenhuma doença com o nome de crepúsculo. Mas apesar de toda a angústia do momento, ela sentia uma energia boa vinda da Senhora e no fundo, uma esperança por uma explicação. Nenhum médico havia diagnosticado o berro do neném para além das teorias convencionais. E ela sentia ali uma chance de desvendar mistério. Num rompante, convidou a Senhora Q'
ue Não Fala para entrar e continuar a falar.

Ela se sentou calmamente com seu leve sorriso no rosto, e com a voz suave de quem fala apenas aquilo que é necessário ser dito, explicou para a Mamãe, prazerosamente, o que se passava com o seu neném. Disse que os nenés vivem imersos em um estado presente tão profundo que nós, adultos, desconhecemos há tempos. Pois já fomos domesticados a remoer o passado e nos desesperar pelo futuro. Disse também que o neném em questão era especial. Ele sentia o crepúsculo vespertino! Imerso na sua atualidade, não se conforma com o sol se pondo. Ainda não entende que a terra dá voltas, que o sol nasce e se põe, que o dia dá lugar para a noite e a noite para o dia. Quando o sol vai embora, o Neném sente como se o mundo estivesse tomando o que lhe pertence. "Sua alma sente o crepúsculo", disse com ternura e admiração. "O seu neném é de uma linhagem diferente. Tem um espírito muito belo. Ele é um filho do sol!". A Mamãe sorriu aliviada. Por mais pitoresca que parece toda a situação, finalmente ela tinha uma resposta para as coisas. Ela então olhou seu relógio e viu os ponteiros indicarem 17h30. O sol se posicionou no horizonte para descer e, lá do quarto, o neném chorou mais uma vez. O berreiro agora é recebido com alegria. Estava entendido que era a expressão de quem vivia cada instante como se fosse o último, cada dia, cada milésimo de segundo de sua existência era preciso e rico em vida. Suas caretas, sorrisos, olhares, mamadas, enfim, jamais aconteceriam de novo. O neném nasceu para viver o presente e ele simplesmente o fazia com maestria. Agora a Mamãe entendia. Entendia e sentia alegria por entender, mas ao mesmo tempo se perguntava, ainda timidamente, o porque ela, na sua própria vida, se alimentava do passado e pensava apenas no futuro. Esquecia o agora, o presente. Rapidamente lhe ocorreu que as pessoas passam a vida inteira pensando no que aconteceu, preocupadas com o que vai acontecer e se esquecendo do que se passa no agora. Foi acudir o Neném refletindo, iniciando uma nova etapa de compreensão. 

A Senhora Que Não Fala finalmente parou de falar, se despediu com um gracioso sorriso, e deixou a Mamãe com o berreiro do Neném. Mas dessa vez era diferente. Ela já sabia que, além de seu, ele também era um filho do Sol.




terça-feira, 7 de outubro de 2014

Menino a Bico de Pena

Por Clarice Lispector

Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar. Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura. Mas por enquanto ei-lo sentado no chão, imerso num vazio profundo.

Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita. E na parede tem o retrato de O Menino. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único gesto total, ele cai sentado. Da boca entreaberta pelo esforço de vida a baba clara escorre e pinga no chão. Olha o pingo bem de perto, como a uma formiga. O braço ergue-se, avança em árduo mecanismo de etapas. E de súbito, como para prender um inefável, com inesperada violência ele achata a baba com a palma da mão. Pestaneja, espera. Finalmente, passado o tempo necessário que se tem de esperar pelas coisas, ele destampa cuidadosamente a mão e olha no assoalho o fruto da experiência. O chão está vazio. Em nova brusca etapa, olha a mão: o pingo de baba está, pois, colado na palma. Agora ele sabe disso também. Então, de olhos bem abertos, lambe a baba que pertence ao menino. Ele pensa bem alto: menino.
- Quem é que você está chamando? pergunta a mãe lá da cozinha. Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. O teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo. E, como ele não pode mais de cansaço, começa a revirar as pupilas até que estas vão mergulhando na linha de horizonte dos olhos. Fecha-os sobre a última imagem, as grades da cama. Adormece esgotado e sereno.
A água secou na boca. A mosca bate no vidro. O sono do menino é raiado de claridade e calor, o sono vibra no ar. Até que, em pesadelo súbito, uma das palavras que ele aprendeu lhe ocorre: ele estremece violentamente, abre os olhos. E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.
Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, para de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá.
É mãe, sim é mãe com fralda na mão. A partir de ver a fralda, ele recomeça a chorar.
- Pois se você está todo molhado!
A notícia o espanta, sua curiosidade recomeça, mas agora uma curiosidade confortável e garantida. Olha com cegueira o próprio molhado, em nova etapa olha a mãe. Mas de repente se retesa e escuta com o corpo todo, o coração batendo pesado na barriga: fonfom!, reconhece ele de repente num grito de vitória e terror – o menino acaba de reconhecer!

- Isso mesmo! diz a mãe com orgulho, isso mesmo, meu amor, é fonfom que passou agora pela rua, vou contar para o papai que você já aprendeu, é assim mesmo que se diz: fonfom, meu amor! diz a mãe puxando-o de baixo para cima e depois de cima para baixo, levantando-o pelas pernas, inclinando-o para trás, puxando-o de novo de baixo para cima. Em todas as posições o menino conserva os olhos bem abertos. Secos como a fralda nova.






NOTA: Texto que me escolheu para na oficina de interpretação "O Silêncio e a Narrativa" ministrada pela atriz, diretora e preparadora de atores Inês Aranha, promovida pelo Teatro Núcleo Experimental, de ago a out/2014. E viva Clarice!