quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Quando 1 vale mais do que 4

Bater o Cruzeiro na final da Copa do Brasil representa a vitória daqueles que lutam com toda a raça pra vencer contra os que jogam com toda técnica (e sorte) pra ganhar. Tenho escutado a tradicional soberba azul dizendo “já temos 4 taças da Copa do Brasil”, como quem diz: “pouco me importa se o Cruzeiro perder”. É o tipo de comportamento que Freud explica. Pois eles dizem sorrindo. Mas o inconsciente  dessa torcida revela indivíduos cheios de taças, porém completamente vazios de amor. E isso entrega o comportamento cantado em coro pela torcida alvinegra: a famosa tremedeira. Sim, meu caro amigo. O Cruzeirense treme quando o Galo vai jogar. E não é de hoje. Fico imaginando conversas entre eles, se perguntando “como um time com tantas taças é capaz de tremer pro maior rival que não é tão “rico” assim?”. No fundo, tal sentimento não passa de uma admiração profunda. Não só por termos o mesmo nome e cores desde 1908. Eles simplesmente não entendem o porque o Atleticano se vangloria tanto de seus históricos times, não só do campeão de 71, mas do vice invicto de 77 (10 pts a frente do 2o ...), do assaltado Galo da libertadores de 81, do timaço de 87, entre outros. Também não entendem como a gente se lembra dos 28 gols do Guilherme em 99. Se perguntam como conseguimos ser o maior público do Brasil jogando a série B e por que eternizamos a camisa 12. Ficam indignados ao lembrarem que ficamos mais de 40 anos na fila dos grandes títulos, e mesmo assim seguimos lotamos os estádios. Ainda não entenderam o choro do Ronaldinho, um craque que tudo tinha, e foi às lágrimas ao vestir o manto alvinegro. Eles brigam entre si por não entenderem como conseguimos escrever histórias cinematográficas como a Libertadores 2013, e viradas épicas na Copa do Brasil 2014, capazes de embalar todo o país em torno do lema “eu acredito”.
 
Em meio a tantos questionamentos, os cruzeirenses tentam se lembrar do seu próprio time de 97. “quem era mesmo o lateral esquerdo?”. Silêncio. Olham entre si encabulados e tentam recordar mais uma vez. Mas só conseguem se lembrar do chute mascado de Elivélton e de algumas defesas do Dida contra o todo poderoso Sporting Cristal. A indignação aumenta quando eles voltam a questionar os mistérios alvinegros: “Por que somos uma torcida e eles ‘a massa’? Por que eles jogam com muita ‘raça e amor’ e nós vivemos ‘cheios de vaidade’?”.  A resposta é simples: O Cruzeiro é assim. Eles sempre andaram em estradas privatizadas, bem asfaltadas, com SOS e tudo mais. Nós dirigimos em ruas esburacadas, de terra vermelha e com cascalho solto. Jipe sem gasolina, com amortecedor quebrado e sem step. Eles ganham títulos nacionais com rodadas de antecedência, vencendo 3 pts do Goiás, do Paysandu no Mineirão.  Nós ficamos com o vice em 77,  invictos, depois de fechar a tabela com 10 pts à frente do segundo colocado. Em 97 eles foram na brisa da sorte com um limitadíssimo e esquecido time (qual era mesmo a dupla de zaga?), e nós tivemos que ir aos Deuses, fazer várias sessões de descarrego para exorcizar mil fantasmas e ganhar em 2013. E agora as histórias se cruzam, como naqueles épicos roteiros cinematográficos: enquanto um só começou a Copa nas semifinais, pois tinha treinado contra Santa Rita e ABC, o outro teve que, não só torcer contra o vento, mas evocar toda espécie de santo pra vencer épicas batalhas contra os grandes do Brasil. Daí você vai dizer que estou exagerando, pois a escolha das chaves foi por sorteio. Eu te digo que não! Se esse sorteio tivesse sido invertido, teria sido cambalacho, obra do STJD. Nosso Jipe foi feito pra andar em estrada de chão, passando forte em todos os buracos, sob tempestade e barro no para-brisa. As vezes acaba a gasolina, a bateria arria, e sabe-se lá como, ele continua acelerando, forte e vingador. Porque o Atlético é assim. É o espelho da nossa existência . É feito de choro e riso, céu e inferno, tristeza e alegria e, sobretudo, da morte e da vida.
 
No dia 26 de novembro de 2014, quando a taça estiver de posse do seu verdadeiro dono, tudo isso estará impresso nela. Daí o Cruzeirense terá mais um grande questionamento a fazer: “Como pode 1 taça valer mais do que 4????”. Haja análise. Essa nem Freud vai poder explicar.
  

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O Crepúsculo e o Neném - Parte 2

O relógio já marcava 17h35 e nada de lágrimas. Não tinha choro, tão pouco o tradicional berreiro. Nem um pequeno sinal de resmungo para dar esperança. O Neném simplesmente vivia aquela tarde sem chorar. Deitado em seu berço, apenas observava o teto branco. A Mamãe estava preocupada. Pensou até em dar umas palmadinhas em seu bumbum para estimular o choro. Mas logo desistiu da estúpida ideia. O tempo passava, o sol já tinha se escondido, o crepúsculo vespertino estava em seu apogeu, e ela se perguntava: “será que ele não sente mais o crepúsculo? Ou isso era todo um papo furado da Senhora Que Não Fala?”. Pegou o telefone e discou para sua lista de pediatras. Aqueles mesmos que divergiam sobre as causas do tradicional berreiro, agora, milagrosamente, concordavam em tudo. A resposta era sempre a mesma: “não tem nada de errado com o seu Neném. Se ele não chora é porque está tudo bem!”. Ela então tinha dois fatos preocupantes: o primeiro, claro, a ausência do choro vespertino do Neném. O segundo, a convergência absoluta das respostas dos pediatras. Era uma unanimidade mais do que burra: bem suspeita. Como assim o Neném não chorou as 17h30? Estaria ele com fome? Teria ele não percebido o sol se pondo? Então chegou a noite absoluta e imponente, rompendo com qualquer tipo esperança. O Neném dormiu em seu horário de costume e a Mamãe ficou acordada durante toda a madrugada, completamente desolada.

Na manhã seguinte, ao ir à venda da esquina, percebeu uma certa inquietação na vizinhança. O assunto era a ausência do choro do Neném. Vizinhos, moradores que ela não conhecia e até mesmo o padeiro, a questionaram com veemência. Perguntavam se o Neném tinha viajado ou se ele havia chorado mais baixo. A Mamãe acabou por dizer a verdade: “ele simplesmente não berrou, não chorou, nenhuma lágrima sequer...”, respondia, com certo constrangimento. Logo a notícia se espalhou. E a expectativa para a tarde daquele dia só aumentava. Já em casa, a Mamãe tentava parecer calma. O Neném, por sua vez, seguia tranquilo sua vida de cidadão neném: acordou pela manhã, mamou, sorriu, choramingou, mamou de novo, sujou as fraldas, emitiu seu típicos sons pela boca, voltou a mamar, e assim por diante. O horário das 17h30 se aproximava. A Mamãe sentia apreensão. Sabia que o caso já era notícia em todo bairro. Começava a imaginar o que a vizinhança ia pensar se o Neném não voltasse a chorar. A tensão estava no ar. E assim que o relógio marcou 17h29, lá estava ela. De camarote. Sentada num banquinho, com os cotovelos nas pernas, apoiando o rosto nas duas palmas das mãos, com os olhos arregalados e bem focados no Neném, esperando o fenômeno começar. Já justificava em seus pensamentos “ontem passou desapercebido, né filho?! Hoje tudo vai correr bem!”. O Neném começou a mexer a boca, estremecer os lábios, endurecer o queixo...”isso meu, amor! Chora! Chora!”. E o que parecia certo, deu errado. O Neném esboçou o movimento do choro, mas acabou por abrir um belo de um bocejo. Isso mesmo. O Neném deu um grande bocejo, daqueles de fazer barulho no desfecho. E depois completou com um sorriso bem largo, de dar gosto! Então, repousou tranquilamente em uma serena expressão. “Meu Deus! Mais um dia...não é possível...”. Pensou a Mamãe, conferindo o relógio, checando o sol no horizonte, verificando a vizinhança no cantinho da janela, através das cortinas.

No dia seguinte, o caos na Vila estava instalado. Falha na entrega do pão, confusão no fechamento do comércio, trabalhadores vagando pelas ruas sem referência de horário e transeuntes desocupados por natureza, alimentavam as mais diversas fofocas. A vizinhança estava aguçada. Alguns diziam que a Mamãe nunca gostou do choro do Neném, que era tudo uma farsa, e o choro era devido às palmadas maternas, sempre as 17h30. Outros acreditavam que o Neném havia sido entregue a uma casa de adoção. Por fim, o boato que conquistou o coração da maioria dizia que Neném estava doente, sem forças para soltar o seu tradicional berro. Em meio a tanto falatório, nada fazia sentido para a Mamãe.

Após uma semana sem o berreiro, em um momento de lucidez, a Mamãe resolveu voltar no tempo em busca de uma resposta: por que nenhum médico conseguira diagnosticar seu choro além das explicações pediátricas convencionais? E por que agora todos dizem ser normal a falta do tal choro? Ela, então, começara a conquistar uma nova camada de conhecimento. Acabava de perceber algo muito valioso para uma mãe. Reconhecia que todos os médicos estudam muito, anos e anos de faculdade, especialização, doutorado, residência e etc. Sabem tudo que podem saber acerca do corpo humano. Mas tamanho é o foco na matéria, no concreto, que parecem ter se esquecido de algo mais importante: do espírito, da alma. Um corpo sem alma é apenas um corpo e nada mais. Agora ela sabe disso também. Da mesma forma que não existem corpos iguais, cada ser humano tem uma alma. Ela finalmente entendeu que os médicos se esforçam para entender nosso lado biológico, mas quem entende mesmo da alma dos nenés são as mães. Sim. As mamães sabem mais do que ninguém o que os corações de seus nenés dizem.

Enquanto realizava tais coisas, a sua casa virava a principal atração da Vila. Todas as manhãs ela recebia dezenas de centenas de manifestações de carinho: flores, cestas de café da manhã, cartas, orações e artigos religiosos. Peregrinos faziam vigília do lado de fora da casa. Vários deles, de joelhos na calçada de cimento, oravam pelo choro. Os moradores depositavam mamadeiras no jardim, com forma de oração. O jornal do bairro estava inquieto e fazia plantão por uma entrevista, ou uma simples declaração da Mamãe. E quando faltava 1 minuto para as 17h30, havia uma espécie de “coro da fé”, com contagem regressiva, em nome do choro, do berreiro.

Em meio à pressão de toda a Vila, a Mamãe já tinha certa consciência do caso. De tamanho amor e carinho, tinha conquistado acesso livre ao coração do seu Neném. De maneira extremamente sensitiva, compreendeu que o Neném já compreendia certas coisas. Entre elas, que o sol ia e vinha. Não sofria mais de crepúsculo vespertino porque já sentia, e admirava também, o crepúsculo matutino. Continuava a ser um Neném que vivia 100% o presente, mas já com certa ciência das coisas. O que o deixava ainda mais apto a aproveitar sua vida de neném.

Afim de dar um basta, no dia seguinte, as 17h29, a Mamãe foi para a porta para acabar com todo o tumulto que persistia. Colocou o Neném em um canguru, virado para frente, e apareceu repentinamente no meio da contagem regressiva. Todos se assustaram e pararam no ato. Flashes de fotografias e saudações se misturaram. A Mamãe, tranquila e serena, olhou nos olhos da multidão de disse, alto e em bom som: “Como podem ver, meu Neném está saudável. Agora ele não chora mais as 17h30. Ele boceja e sorri. Com muita alegria e silenciosamente.”. O Neném, esperto que é, confirmou a fala da mamãe com um belo e longo bocejo, seguido do grande sorriso. Após o ato, houve um silêncio intenso. Todos se mostraram espantados e, de certa forma, frustrados. A Mamãe voltou para sua casa e a multidão se dispersou sussurrando o fim da saga.


Com o Neném no colo, a Mamãe, mais aliviada, seguiu refletindo. O choro das 17h30 havia se transformado na razão de ser da Vila. E a ausência do mesmo, numa grande causa. Pela primeira vez na história da humanidade o sorriso de um neném causou tristeza e decepção. Talvez por que, no fundo, as pessoas saibam que o Neném está adquirindo consciência das coisas. O inconsciente coletivo sabe que, um dia, também tiveram sua verdade sacrificada para que pudesse existir a sociedade. Talvez elas encontraram no Neném uma verdade que há tempos lhes falta: a verdade de quem chora o por do sol, o fim de mais um dia, de quem adora a vida e sabe que ela é realmente única. A verdade de quem abre os olhos pela manhã e vê o dia como ele realmente é: único e inédito. Um dia todos da Vila foram assim. Há muito, muito tempo atrás. Quando eram nenés. E agora todos sabem que, um dia, o Neném que tanto os alegrou com seu choro, deixará de ser Neném para, enfim, ser humano. Gente grande na Vila...