O relógio já marcava 17h35 e nada de lágrimas. Não tinha
choro, tão pouco o tradicional berreiro. Nem um pequeno sinal de resmungo para
dar esperança. O Neném simplesmente vivia aquela tarde sem chorar. Deitado em
seu berço, apenas observava o teto branco. A Mamãe estava preocupada. Pensou
até em dar umas palmadinhas em seu bumbum para estimular o choro. Mas logo
desistiu da estúpida ideia. O tempo passava, o sol já tinha se escondido, o
crepúsculo vespertino estava em seu apogeu, e ela se perguntava: “será que ele
não sente mais o crepúsculo? Ou isso era todo um papo furado da Senhora Que Não
Fala?”. Pegou o telefone e discou para sua lista de pediatras. Aqueles mesmos
que divergiam sobre as causas do tradicional berreiro, agora, milagrosamente,
concordavam em tudo. A resposta era sempre a mesma: “não tem nada de errado com
o seu Neném. Se ele não chora é porque está tudo bem!”. Ela então tinha dois
fatos preocupantes: o primeiro, claro, a ausência do choro vespertino do Neném.
O segundo, a convergência absoluta das respostas dos pediatras. Era uma
unanimidade mais do que burra: bem suspeita. Como assim o Neném não chorou as
17h30? Estaria ele com fome? Teria ele não percebido o sol se pondo? Então chegou
a noite absoluta e imponente, rompendo com qualquer tipo esperança. O Neném
dormiu em seu horário de costume e a Mamãe ficou acordada durante toda a
madrugada, completamente desolada.
Na manhã seguinte, ao ir à venda da esquina, percebeu uma
certa inquietação na vizinhança. O assunto era a ausência do choro do Neném.
Vizinhos, moradores que ela não conhecia e até mesmo o padeiro, a questionaram
com veemência. Perguntavam se o Neném tinha viajado ou se ele havia chorado
mais baixo. A Mamãe acabou por dizer a verdade: “ele simplesmente não berrou,
não chorou, nenhuma lágrima sequer...”, respondia, com certo constrangimento.
Logo a notícia se espalhou. E a expectativa para a tarde daquele dia só
aumentava. Já em casa, a Mamãe tentava parecer calma. O Neném, por sua vez,
seguia tranquilo sua vida de cidadão neném: acordou pela manhã, mamou, sorriu,
choramingou, mamou de novo, sujou as fraldas, emitiu seu típicos sons pela
boca, voltou a mamar, e assim por diante. O horário das 17h30 se aproximava. A
Mamãe sentia apreensão. Sabia que o caso já era notícia em todo bairro.
Começava a imaginar o que a vizinhança ia pensar se o Neném não voltasse a chorar.
A tensão estava no ar. E assim que o relógio marcou 17h29, lá estava ela. De
camarote. Sentada num banquinho, com os cotovelos nas pernas, apoiando o rosto
nas duas palmas das mãos, com os olhos arregalados e bem focados no Neném,
esperando o fenômeno começar. Já justificava em seus pensamentos “ontem passou
desapercebido, né filho?! Hoje tudo vai correr bem!”. O Neném começou a mexer a
boca, estremecer os lábios, endurecer o queixo...”isso meu, amor! Chora!
Chora!”. E o que parecia certo, deu errado. O Neném esboçou o movimento do
choro, mas acabou por abrir um belo de um bocejo. Isso mesmo. O Neném deu um
grande bocejo, daqueles de fazer barulho no desfecho. E depois completou com um
sorriso bem largo, de dar gosto! Então, repousou tranquilamente em uma serena
expressão. “Meu Deus! Mais um dia...não é possível...”. Pensou a Mamãe,
conferindo o relógio, checando o sol no horizonte, verificando a vizinhança no
cantinho da janela, através das cortinas.
No dia seguinte, o caos na Vila estava instalado. Falha na
entrega do pão, confusão no fechamento do comércio, trabalhadores vagando pelas
ruas sem referência de horário e transeuntes desocupados por natureza,
alimentavam as mais diversas fofocas. A vizinhança estava aguçada. Alguns
diziam que a Mamãe nunca gostou do choro do Neném, que era tudo uma farsa, e o
choro era devido às palmadas maternas, sempre as 17h30. Outros acreditavam que
o Neném havia sido entregue a uma casa de adoção. Por fim, o boato que
conquistou o coração da maioria dizia que Neném estava doente, sem forças para
soltar o seu tradicional berro. Em meio a tanto falatório, nada fazia sentido
para a Mamãe.
Após uma semana sem o berreiro, em um momento de lucidez, a
Mamãe resolveu voltar no tempo em busca de uma resposta: por que nenhum médico
conseguira diagnosticar seu choro além das explicações pediátricas
convencionais? E por que agora todos dizem ser normal a falta do tal choro?
Ela, então, começara a conquistar uma nova camada de conhecimento. Acabava de
perceber algo muito valioso para uma mãe. Reconhecia que todos os médicos
estudam muito, anos e anos de faculdade, especialização, doutorado, residência
e etc. Sabem tudo que podem saber acerca do corpo humano. Mas tamanho é o foco
na matéria, no concreto, que parecem ter se esquecido de algo mais importante:
do espírito, da alma. Um corpo sem alma é apenas um corpo e nada mais. Agora
ela sabe disso também. Da mesma forma que não existem corpos iguais, cada ser
humano tem uma alma. Ela finalmente entendeu que os médicos se esforçam para
entender nosso lado biológico, mas quem entende mesmo da alma dos nenés são as
mães. Sim. As mamães sabem mais do que ninguém o que os corações de seus nenés
dizem.
Enquanto realizava tais coisas, a sua casa virava a
principal atração da Vila. Todas as manhãs ela recebia dezenas de centenas de
manifestações de carinho: flores, cestas de café da manhã, cartas, orações e artigos
religiosos. Peregrinos faziam vigília do lado de fora da casa. Vários deles, de
joelhos na calçada de cimento, oravam pelo choro. Os moradores depositavam
mamadeiras no jardim, com forma de oração. O jornal do bairro estava inquieto e
fazia plantão por uma entrevista, ou uma simples declaração da Mamãe. E quando
faltava 1 minuto para as 17h30, havia uma espécie de “coro da fé”, com contagem
regressiva, em nome do choro, do berreiro.
Em meio à pressão de toda a Vila, a Mamãe já tinha certa
consciência do caso. De tamanho amor e carinho, tinha conquistado acesso livre
ao coração do seu Neném. De maneira extremamente sensitiva, compreendeu que o
Neném já compreendia certas coisas. Entre elas, que o sol ia e vinha. Não
sofria mais de crepúsculo vespertino porque já sentia, e admirava também, o
crepúsculo matutino. Continuava a ser um Neném que vivia 100% o presente, mas
já com certa ciência das coisas. O que o deixava ainda mais apto a aproveitar
sua vida de neném.
Afim de dar um basta, no dia seguinte, as 17h29, a Mamãe foi
para a porta para acabar com todo o tumulto que persistia. Colocou o Neném em
um canguru, virado para frente, e apareceu repentinamente no meio da contagem
regressiva. Todos se assustaram e pararam no ato. Flashes de fotografias e
saudações se misturaram. A Mamãe, tranquila e serena, olhou nos olhos da
multidão de disse, alto e em bom som: “Como podem ver, meu Neném está saudável.
Agora ele não chora mais as 17h30. Ele boceja e sorri. Com muita alegria e
silenciosamente.”. O Neném, esperto que é, confirmou a fala da mamãe com um
belo e longo bocejo, seguido do grande sorriso. Após o ato, houve um silêncio
intenso. Todos se mostraram espantados e, de certa forma, frustrados. A Mamãe
voltou para sua casa e a multidão se dispersou sussurrando o fim da saga.
Com o Neném no colo, a Mamãe, mais aliviada, seguiu
refletindo. O choro das 17h30 havia se transformado na razão de ser da Vila. E
a ausência do mesmo, numa grande causa. Pela primeira vez na história da
humanidade o sorriso de um neném causou tristeza e decepção. Talvez por que, no
fundo, as pessoas saibam que o Neném está adquirindo consciência das coisas. O
inconsciente coletivo sabe que, um dia, também tiveram sua verdade sacrificada
para que pudesse existir a sociedade. Talvez elas encontraram no Neném uma
verdade que há tempos lhes falta: a verdade de quem chora o por do sol, o fim
de mais um dia, de quem adora a vida e sabe que ela é realmente única. A verdade
de quem abre os olhos pela manhã e vê o dia como ele realmente é: único e
inédito. Um dia todos da Vila foram assim. Há muito, muito tempo atrás. Quando
eram nenés. E agora todos sabem que, um dia, o Neném que tanto os alegrou com
seu choro, deixará de ser Neném para, enfim, ser humano. Gente grande na
Vila...