terça-feira, 7 de outubro de 2014

Menino a Bico de Pena

Por Clarice Lispector

Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar. Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura. Mas por enquanto ei-lo sentado no chão, imerso num vazio profundo.

Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita. E na parede tem o retrato de O Menino. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único gesto total, ele cai sentado. Da boca entreaberta pelo esforço de vida a baba clara escorre e pinga no chão. Olha o pingo bem de perto, como a uma formiga. O braço ergue-se, avança em árduo mecanismo de etapas. E de súbito, como para prender um inefável, com inesperada violência ele achata a baba com a palma da mão. Pestaneja, espera. Finalmente, passado o tempo necessário que se tem de esperar pelas coisas, ele destampa cuidadosamente a mão e olha no assoalho o fruto da experiência. O chão está vazio. Em nova brusca etapa, olha a mão: o pingo de baba está, pois, colado na palma. Agora ele sabe disso também. Então, de olhos bem abertos, lambe a baba que pertence ao menino. Ele pensa bem alto: menino.
- Quem é que você está chamando? pergunta a mãe lá da cozinha. Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. O teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo. E, como ele não pode mais de cansaço, começa a revirar as pupilas até que estas vão mergulhando na linha de horizonte dos olhos. Fecha-os sobre a última imagem, as grades da cama. Adormece esgotado e sereno.
A água secou na boca. A mosca bate no vidro. O sono do menino é raiado de claridade e calor, o sono vibra no ar. Até que, em pesadelo súbito, uma das palavras que ele aprendeu lhe ocorre: ele estremece violentamente, abre os olhos. E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.
Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, para de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá.
É mãe, sim é mãe com fralda na mão. A partir de ver a fralda, ele recomeça a chorar.
- Pois se você está todo molhado!
A notícia o espanta, sua curiosidade recomeça, mas agora uma curiosidade confortável e garantida. Olha com cegueira o próprio molhado, em nova etapa olha a mãe. Mas de repente se retesa e escuta com o corpo todo, o coração batendo pesado na barriga: fonfom!, reconhece ele de repente num grito de vitória e terror – o menino acaba de reconhecer!

- Isso mesmo! diz a mãe com orgulho, isso mesmo, meu amor, é fonfom que passou agora pela rua, vou contar para o papai que você já aprendeu, é assim mesmo que se diz: fonfom, meu amor! diz a mãe puxando-o de baixo para cima e depois de cima para baixo, levantando-o pelas pernas, inclinando-o para trás, puxando-o de novo de baixo para cima. Em todas as posições o menino conserva os olhos bem abertos. Secos como a fralda nova.






NOTA: Texto que me escolheu para na oficina de interpretação "O Silêncio e a Narrativa" ministrada pela atriz, diretora e preparadora de atores Inês Aranha, promovida pelo Teatro Núcleo Experimental, de ago a out/2014. E viva Clarice!

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Pra Sempre




Mãezukich, Momis, Mãezuca...Sessentona do meu coração. De acordo com o sangue dos Vianas, você acaba de completar, no mínimo, metade da sua vida! E que vida, hein?!

Poderia escrever linhas e linhas sobre suas histórias. Suas batalhas. Vitórias e derrotas, como todas as grandes histórias. Mas prefiro ser mais simples. Falar o que representa pra mim. 

Você é a luz da minha vida. Meu amor. Acho que nossas almas serão mãe e filho por toda a eternidade. Hoje quando acolho o meu pequeno, e quando o vejo ser acolhido por sua mamãe, me lembro de você. O quanto teve cuidado por mim desde pequeno. Não só tratando do meu pé torto, mas também acudindo minha alma. Me fazendo sentir parte desse mundão. 





Sou um filho muito grato. O mais grato desse mundo. Tenho a melhor mãe que poderia ter. Sua alma é repleta de bondade! Não tem espaço para sentimentos ruins. Você é um ser capaz de derramar amores e flores nos seus maiores inimigos (se os tivesse!). Mas uma pessoa assim não tem inimigos, não é?! Quem tenta ser inimigo logo se afasta, é jogado de lado. Pois a sua bondade, o seu amor, são tão grandes, e tomam todo o seu ser, que no fim não sobra espaço para energias ruins. 



Mamãe querida. Senhora do mar, da terra. Ser que respira fundo o ar e que irradia fogo. Você tem o poder de fazer o bem. Você é o bem em carne e osso. São 60 anos vividos assim: de coração aberto para o mundo. Imagino que tenha se machucado por aí. Mas sei que só assim poderia viver: de peito aberto, com o coração na frente de tudo. Não poderia ser diferente já que é a primeira filha de Seu Zeca e da Dona Cecilia, não é?



Que assim seja e sempre. Uma vida repleta de conhecimentos, de vivência. Você se preocupa com sua essência, com sua conexão com nosso universo é sempre me ensinou que assim devo viver. Que nada faria sentido na minha vida se eu não encontrasse tal conexão. É a mulher da natureza, das essências florais, da educação! Tal qual seus grandes autores e mestres, você é atemporal. Sabe por que? Porque amor no coração não tem preço nem prazo de validade. É pra sempre! E quando digo amor, é amor de verdade. Aquele eterno. Por tudo e por todos. Pelo mundo onde vivemos, pelo ar que respiramos. Todos que vivem a sua volta o sentem. E agora tem gente nova no pedaço, né? Que bom pra ele!






E sorte tenho eu, que tive esse amor desde muito muito pequeno. Bem antes de pensar em vir ao mundo. Lá nas profundezas do oceano. Quando eu era um peixe pequenino e mergulhava em busca de uma mamãe eterna. Há tempos. Muito antes do 25 de setembro de anos atrás. Na verdade, nem sei bem dizer. Pois conexão de alma é uma coisa muito profunda que não se explica, né? É pra sempre.

Feliz aniversário!






quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Aprendendo a Viver

Por Clarice Lispector

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
     Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos se pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas "melhore o momento presente", exclamava. E acrescentava: "Estamos vivos agora." E comentava com desgosto: "Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar."
     A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois é na seqüência dos agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
     Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
     Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam - ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos - ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
     Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber."
     E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: "Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?" Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
     Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: "A opinião pública é uma tirana débil, se comparada opinião que temos de nós mesmos." É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois "o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.
     E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. "Creio", escreveu, "que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força". E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas - e quem de nós não faz isso? - , como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
     E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
     Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do "mundo livre". Além disso, procurava a salvação pelo risco - sem o qual a vida para ele não valia a pena - “ e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas" (o grifo é meu).
     Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. "A avareza e o tédio danam o mundo. Dois ramos, enfim, do egoísmo", acrescenta o autor do artigo.
     Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Feliz Ano Novo.






sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Sacolejo do Ônibus de Bertioga

Era mais uma tarde de sexta-feira e Ane dormia levemente na poltrona 22, corredor, do ônibus que saíra de SP rumo à Bertioga. Era uma tarde quente, de belo pôr do sol. Apesar do vai e vem da viagem, das freadas repentinas, seu sono era tranquilo. Acumulava todo o desgaste da semana. Em toda parada ela escutava os freios a pressão do ônibus, o abrir e fechar da porta e o caminhar dos passageiros no corredor em busca de seus respectivos assentos. Seus olhos se entreabriam levemente, de maneira instintiva, fazendo com que ela tivesse uma vista embaçada do que ocorria. Sua cabeça estava levemente inclinada para a direita, lhe proporcionando a visão de todo o corredor do ônibus, assim como da estrada, que via ao fundo através do para-brisa do ônibus. Era uma espécies de “luz no fim do túnel”. Ela jogava o jogo do sono vs o sacolejo da viagem. Mas na sexta, tudo era válido. A estrada a fazia muito bem. E entre freadas e aceleradas, o sono vencia a maioria das batalhas. E com ele vinham fortes sonhos. Imagens reais da sua semana: trabalho, e-mails, reuniões, planilhas e acontecimentos isolados ganhavam outra dimensão. E o ônibus acelera estrada adentro, deixando São Paulo pra trás. As paradas diminuíram e o sono consolidou sua vitória. Ane agora respira profundamente. Deixa todas as mazelas da dura semana pra trás. Quanto mais o ônibus anda, mais ela relaxa em seu profundo sono. Sua cabeça vai para um lado e para o outro, acompanhando as curvas da estrada. Seus pés ganham o corredor, buscando mais conforto. Os braços já não estão cruzados, e sim soltos e leves em seu colo. Ela inspira…respira... profundamente... Não há sacolejo que a perturbe. Quando de repente, uma voz penetra seu sono: “com licença. 21, janela.” exclama um passageiro, lhe mostrando seu bilhete e dando-lhe um tremendo cutucão no ombro direito. Dessa vez seus olhos abriram rapidamente, de uma só vez. O rapaz estava pedindo passagem para a poltrona ao seu lado. Apesar de todo mal humor, de quem acabara de ser despertada do melhor sono de todos os tempos, Ane se levanta, calada, com a expressão neutra, e dá passagem ao rapaz.

O passageiro guardou sua bagagem, sentou-se em seu lugar e disse meio sem jeito: “obrigado.”. Ane, em pé e com os dois braços erguidos, segurando no apoio do ônibus, discretamente observou o observou de costas no caminho até a poltrona 21. Sua expressão externa permaneceu neutra, mas por dentro seus pensamentos perdoaram completamente o pobre moço. Ela sentiu um arrepio dos pés à cabeça. Gostou do físico do rapaz do cutucão. Pra não dar bandeira, sentou-se rapidamente, se ajeitou na poltrona e respirou fundo. O arrepio no corpo era um fato. Com a cabeça reta, moveu os olhos discretamente para a esquerda. Ele cruza os braços e Ane retorna à sua posição original. Silêncio. Ele olha vagamente pela janela e observa o entardecer. Por um momento fica aquele espaço para perguntas inúteis de alguma das partes: “está quente hoje, né?” ou “desculpe-me por te acordar...”. Mas o silêncio prevalece. Apenas o ronco do motor ao fundo. Outras possibilidades de diálogo inútil são avaliadas por ambos, em seus pensamentos: “Tudo bem?”ou “você é de SP ou de Bertioga?”, para logo depois o famoso “o que você faz? Trabalha com o que?”. Mas nada acontece. Silêncio, silêncio e mais silêncio... E menos freadas. A estrada já não embala o sono de Ane. A nova cia a deixou inquieta, se coçando por dentro. O sono profundo se torna impossível. Mesmo assim ela fecha os olhos. Já que não tinha o diálogo, ela precisava ser coerente na sua ação física. E de olhos quase fechados, com a cabeça levemente virada para a esquerda, observa o rapaz com visão periférica. Ele mantém os olhos fixos na janela, contemplando o entardecer. Compenetrado, parecia não a perceber ali. Ane então fecha completamente os olhos e tenta dormir. Mas era realmente impossível. O estado relaxado de outrora se transformou em uma inquietação completa. Sem freadas para paradas, as curvas começam a ficar mais intensas. O vai e vem do ônibus ganhava nova dimensão. Prá lá e pra cáVai e vem...Era o sacolejo de volta, e com força total. O rapaz, ainda compenetrado, observa o sol se pondo. Ane então, num rompante instintivo, se embalou no sacolejo do ônibus e começou a acompanhar suas curvas com o movimento de cabeça. Curva pra esquerda, cabeça pra direita. Curva pra direita, cabeça pra esquerda. E assim foi. De maneira consciente, se fez de inconsciente. Estabeleceu tal movimento, simulando o verdadeiro sono profundo de minutos antes. Até que veio uma boa curva pra direita, e sua cabeça descontroladamente,  mas de forma controlada por ela, encosta no ombro do rapaz. Ela respira fundo, sente o impacto e analisa a receptividade. Mas logo veio uma curva oposta, ainda mais forte, que a levou de volta. “Curva maldita!”, lamenta em seu pensamento. Mas ela tinha experiência. Anos de estrada. Era praticamente uma veterana no caminho SP – Bertioga. Sabia que o sacolejo não a deixaria na mão. E logo veio outra curva a seu favor e...pimba! Bochecha esquerda no ombro direito do rapaz: encaixe perfeito! Se acomodou de vez. Fez um movimento típico de quem teve o sono quase interrompido. Algo do tipo “ai...quase acordei...mas continuo a dormir profundamente...”. Fez do ombro do rapaz um verdadeiro travesseiro de plumas de ganso. E ali ficou. Foi perseverante e suportou o sacolejo inverso. Percebeu que o rapaz não estava se importando. Mas também não correspondia ao movimento. “Será que ele percebeu que estou fingindo ou ele realmente acredita que estou dormindo?”, analisa. Mas já não importava. A próxima etapa estava por vir. Segurava o sacolejo inverso e se aprofundava “na pluma de ganso”. Sua cabeça estava praticamente encaixada no pescoço do rapaz, no formato côncavo de seu ombro. Parecia mais duas peças de lego. A respiração profunda já ia em direção ao peito dele. E tome sacolejo. Ane então, ainda no seu sono simulado, levou sua mão direita ao próprio rosto para uma coçada na bochecha. No retorno do movimento, a deixou cair na perna direita do rapaz, mas de maneira despretensiosa, sem tônus. Como fazem as pessoas quando descansam suas mãos durante um sono comum. Silêncio. Apreensão. O rapaz sentiu o movimento e não fez nada. Absolutamente nada. Ficou imóvel. Foi o sinal que ela precisava para agir. Agora sem análises ou delongas. No embalo do sacolejo, localizou o zíper do rapaz e abriu sua calça sem dificuldades. Quando sua mão entrou na cueca dele, ela percebeu que ele estava consciente de todos os movimentos silenciosos desde o início. Era um momento perfeito, de cumplicidade. Transição do dia pra noite. Com a cabeça encostada no peito dele, entreabriu os olhos e viu o que tinha nas mãos. Imediatamente sua boca se abriu em completa admiração, com um ligeiro suspiro. Sentia o sacolejo, a plenitude, o silêncio que antecede a glória. E num rompante, deixou sua cabeça escorregar peito abaixo e...PIMBA! Sim. Isso mesmo. Ela caiu de boca no pinto do rapaz. Sem lhe dizer uma só palavra. O rapaz, receoso, olhou para os lados e sem acreditar no que acontecia. Ergueu o braço esquerdo, passou a mão no cabelo e depois puxou a alavanca para descer sua poltrona. Ane, no embalo do sacolejo, ali ficou durante o restante da viagem. Estava em seu playground preferido.

Na chegada a Bertioga os dois desceram, ainda em silêncio. Retiraram suas bagagens e, ali mesmo, em pé, no terminal de desembarque, tentavam mais uma vez iniciar um diálogo inútil: “viagem rápida, né?“ ou “você pega sempre esse ônibus?”. Mas o silêncio prevaleceu de novo. Só que dessa vez com os dois se olhando nos olhos, profundamente. Mistura de vergonha com sorriso. De timidez com promiscuidade. Ane então, num rompante, quebra a imobilidade. Abre sua bolsa, saca um pedaço de papel cor-de-rosa, uma caneta, e começa a escrever algo. Faz uma pausa dramática, olha para o rapaz, e dá uma tremenda gargalhada de se ouvir em todo o terminal rodoviário. Termina o bilhete, olha nos olhos do rapaz e diz, com um sorriso bem sem vergonha: “Oi! Meu nome é Ane e eu adoro viajar pra Bertioga!”. O rapaz esboça uma resposta, mas ela lhe dá as costas rapidamente e vai embora. Enquanto Ane sumia no meio da multidão, ele pensava, de boca aberta, na loucura que acabara de viver. Havia sido a viagem mais atípica e prazerosa da sua vida. Mal acreditava que a veria novamente. Respirou fundo, sorriu levemente. Não era só prazer. Era amor. Amor verdadeiro, daqueles de alma!  Foi então checar o bilhete. Quando o abriu, o sorriso encolheu: não havia telefone, tão pouco endereço. Apenas um singelo coração desenhado, com uma marcação dentro: 29º.


domingo, 10 de agosto de 2014

Salve 6 e 16 de Julho

Hoje, segundo domingo de agosto de 2014, devo reverenciar outras datas. Em um 6 de julho de anos atrás a cegonha trouxe ao mundo o meu pai. E há 3 semanas, em 16 de julho,  a mesma cegonha (acompanhada pelo ET) trouxe também o meu filho Gabriel.

Meu pai é funcho, feijão sem bicho. Veio dos confins da pacata Buenópolis, e Curumataí, no norte de Minas. Nasceu pelado e hoje está vestido. Desceu pra Curvelo (ou Corinto, nunca sei muito bem), Sete Lagoas, desbravou Vespasiano e repousou em berço esplêndido na bela Lagoa Santa, sua terra desde que me entendo por gente. Serviu à aeronáutica por 8 anos, ficou preso 1 dia por causa da revolução, já trabalhou em açougue, ciscou de cá e de lá, tocou sax na banda da cidade, foi um talentoso canhoto na ponta esquerda do clube de Sete Lagoas, aprendeu a dar 500 toques por minuto na máquina de escrever, sem errar! Viu a máquina de fax chegar ao Brasil como a grande inovação do ano e ajudou a Cemig a crescer com mais de 30 anos de trabalho duro. Também se formou em direito, sem perder uma aula sequer, e foi o primeiro Presidente da OAB na Subseção de Lagoa Santa. Cumpriu 2 mandatos com maestria e excelência. Hoje figura como grande saxofonista desse Brasilzão. Escrever fatos sobre meu herói é simples. Difícil mesmo é dizer o Pai que ele foi, e sempre será pra mim.

Ele é casca grossa. Sempre foi. Me ensinou a valorizar o que tenho e a ter garra para batalhar pelo que quero. Com ele aprendi a comer salada antes do prato principal, a cumprimentar e me despedir das pessoas em todas as vezes que chego ou saio de um lugar. Me ensinou o que é honestidade, e que nesse mundo nada se consegue de graça. Quando eu nasci com meus pés tortos, necessitando de um tratamento especial para poder andar, ele teve que vender o seu fusca para não ser obrigado a trancar a faculdade de direito. E a vida deu voltas e esse mesmo fusca está hoje na garagem da nossa casa. Não acredito em coincidências. Acho que a vida nos dá de volta o que damos a ela. E com certeza meu Pai recebeu sempre o que ele deu de bom pro mundo, sobretudo para os filhos. Talvez hoje eu esteja começando a entender o 6 de julho, por causa do 16 de julho.

El...El...El...Gabriel...E ele veio. Como diria o poeta: “a vida não pede licença, nem muito menos desculpa.”. A vida simplesmente acontece. Quem sou eu para dizer o contrário? E ele chegou. Um feijão sem bicho, como o avô. Jamais poderia imaginar que meu dia dos pais de 2014 eu seria um dos protagonistas do dia. Acordei diferente. Como tenho acordado em todos os dias desde 16 de julho passado. Gabriel repousou em meu colo pela manhã. Cochilamos juntos, ainda na cama. Depois troquei sua fralda e o trouxe para a sala. Ficamos escutando vinil juntos. Comecei a lhe mostrar uma das melhores coisas do mundo: a música. Ele ouviu atentamente, e sorriu muito em Don’t Let Me Down dos Beatles. Tomei café o observando e mergulhando nos seus olhos profundos. Olhos de quem está começando e ver nosso mundo. Cheio de mazelas, é verdade. Mas extremamente excitante de se viver. Sei que ele vai tropeçar, aprender e se decepcionar com esse mundo cada vez mais maluco. Mas também tenho a certeza de que vai adorá-lo e aproveita-lo em cada momento, cada instante. Ele vai ser o grande autor de uma linda obra, que será sua própria vida. Eu, como protagonista de hoje, estarei sempre por perto. Não só como um grande apoiador e incentivador, mas também como o principal espectador. Tudo que aprendi com o 6 de julho será usado no 16, e vice-versa. Sinto uma conexão muito pura com ele. Algo mágico, eterno e muito belo.


Sigo assim. Vivendo todos os dias com o amor de “6 de julho”. Agora ainda mais forte com o “16 de julho”. Pai, te amo. A você só tenho que mostrar minha eterna gratidão. Filho, você ainda não lê. Mas não importa. A gente se entende de outra forma. E vê se cresce logo pra gente andar de bicicleta...