sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Sacolejo do Ônibus de Bertioga

Era mais uma tarde de sexta-feira e Ane dormia levemente na poltrona 22, corredor, do ônibus que saíra de SP rumo à Bertioga. Era uma tarde quente, de belo pôr do sol. Apesar do vai e vem da viagem, das freadas repentinas, seu sono era tranquilo. Acumulava todo o desgaste da semana. Em toda parada ela escutava os freios a pressão do ônibus, o abrir e fechar da porta e o caminhar dos passageiros no corredor em busca de seus respectivos assentos. Seus olhos se entreabriam levemente, de maneira instintiva, fazendo com que ela tivesse uma vista embaçada do que ocorria. Sua cabeça estava levemente inclinada para a direita, lhe proporcionando a visão de todo o corredor do ônibus, assim como da estrada, que via ao fundo através do para-brisa do ônibus. Era uma espécies de “luz no fim do túnel”. Ela jogava o jogo do sono vs o sacolejo da viagem. Mas na sexta, tudo era válido. A estrada a fazia muito bem. E entre freadas e aceleradas, o sono vencia a maioria das batalhas. E com ele vinham fortes sonhos. Imagens reais da sua semana: trabalho, e-mails, reuniões, planilhas e acontecimentos isolados ganhavam outra dimensão. E o ônibus acelera estrada adentro, deixando São Paulo pra trás. As paradas diminuíram e o sono consolidou sua vitória. Ane agora respira profundamente. Deixa todas as mazelas da dura semana pra trás. Quanto mais o ônibus anda, mais ela relaxa em seu profundo sono. Sua cabeça vai para um lado e para o outro, acompanhando as curvas da estrada. Seus pés ganham o corredor, buscando mais conforto. Os braços já não estão cruzados, e sim soltos e leves em seu colo. Ela inspira…respira... profundamente... Não há sacolejo que a perturbe. Quando de repente, uma voz penetra seu sono: “com licença. 21, janela.” exclama um passageiro, lhe mostrando seu bilhete e dando-lhe um tremendo cutucão no ombro direito. Dessa vez seus olhos abriram rapidamente, de uma só vez. O rapaz estava pedindo passagem para a poltrona ao seu lado. Apesar de todo mal humor, de quem acabara de ser despertada do melhor sono de todos os tempos, Ane se levanta, calada, com a expressão neutra, e dá passagem ao rapaz.

O passageiro guardou sua bagagem, sentou-se em seu lugar e disse meio sem jeito: “obrigado.”. Ane, em pé e com os dois braços erguidos, segurando no apoio do ônibus, discretamente observou o observou de costas no caminho até a poltrona 21. Sua expressão externa permaneceu neutra, mas por dentro seus pensamentos perdoaram completamente o pobre moço. Ela sentiu um arrepio dos pés à cabeça. Gostou do físico do rapaz do cutucão. Pra não dar bandeira, sentou-se rapidamente, se ajeitou na poltrona e respirou fundo. O arrepio no corpo era um fato. Com a cabeça reta, moveu os olhos discretamente para a esquerda. Ele cruza os braços e Ane retorna à sua posição original. Silêncio. Ele olha vagamente pela janela e observa o entardecer. Por um momento fica aquele espaço para perguntas inúteis de alguma das partes: “está quente hoje, né?” ou “desculpe-me por te acordar...”. Mas o silêncio prevalece. Apenas o ronco do motor ao fundo. Outras possibilidades de diálogo inútil são avaliadas por ambos, em seus pensamentos: “Tudo bem?”ou “você é de SP ou de Bertioga?”, para logo depois o famoso “o que você faz? Trabalha com o que?”. Mas nada acontece. Silêncio, silêncio e mais silêncio... E menos freadas. A estrada já não embala o sono de Ane. A nova cia a deixou inquieta, se coçando por dentro. O sono profundo se torna impossível. Mesmo assim ela fecha os olhos. Já que não tinha o diálogo, ela precisava ser coerente na sua ação física. E de olhos quase fechados, com a cabeça levemente virada para a esquerda, observa o rapaz com visão periférica. Ele mantém os olhos fixos na janela, contemplando o entardecer. Compenetrado, parecia não a perceber ali. Ane então fecha completamente os olhos e tenta dormir. Mas era realmente impossível. O estado relaxado de outrora se transformou em uma inquietação completa. Sem freadas para paradas, as curvas começam a ficar mais intensas. O vai e vem do ônibus ganhava nova dimensão. Prá lá e pra cáVai e vem...Era o sacolejo de volta, e com força total. O rapaz, ainda compenetrado, observa o sol se pondo. Ane então, num rompante instintivo, se embalou no sacolejo do ônibus e começou a acompanhar suas curvas com o movimento de cabeça. Curva pra esquerda, cabeça pra direita. Curva pra direita, cabeça pra esquerda. E assim foi. De maneira consciente, se fez de inconsciente. Estabeleceu tal movimento, simulando o verdadeiro sono profundo de minutos antes. Até que veio uma boa curva pra direita, e sua cabeça descontroladamente,  mas de forma controlada por ela, encosta no ombro do rapaz. Ela respira fundo, sente o impacto e analisa a receptividade. Mas logo veio uma curva oposta, ainda mais forte, que a levou de volta. “Curva maldita!”, lamenta em seu pensamento. Mas ela tinha experiência. Anos de estrada. Era praticamente uma veterana no caminho SP – Bertioga. Sabia que o sacolejo não a deixaria na mão. E logo veio outra curva a seu favor e...pimba! Bochecha esquerda no ombro direito do rapaz: encaixe perfeito! Se acomodou de vez. Fez um movimento típico de quem teve o sono quase interrompido. Algo do tipo “ai...quase acordei...mas continuo a dormir profundamente...”. Fez do ombro do rapaz um verdadeiro travesseiro de plumas de ganso. E ali ficou. Foi perseverante e suportou o sacolejo inverso. Percebeu que o rapaz não estava se importando. Mas também não correspondia ao movimento. “Será que ele percebeu que estou fingindo ou ele realmente acredita que estou dormindo?”, analisa. Mas já não importava. A próxima etapa estava por vir. Segurava o sacolejo inverso e se aprofundava “na pluma de ganso”. Sua cabeça estava praticamente encaixada no pescoço do rapaz, no formato côncavo de seu ombro. Parecia mais duas peças de lego. A respiração profunda já ia em direção ao peito dele. E tome sacolejo. Ane então, ainda no seu sono simulado, levou sua mão direita ao próprio rosto para uma coçada na bochecha. No retorno do movimento, a deixou cair na perna direita do rapaz, mas de maneira despretensiosa, sem tônus. Como fazem as pessoas quando descansam suas mãos durante um sono comum. Silêncio. Apreensão. O rapaz sentiu o movimento e não fez nada. Absolutamente nada. Ficou imóvel. Foi o sinal que ela precisava para agir. Agora sem análises ou delongas. No embalo do sacolejo, localizou o zíper do rapaz e abriu sua calça sem dificuldades. Quando sua mão entrou na cueca dele, ela percebeu que ele estava consciente de todos os movimentos silenciosos desde o início. Era um momento perfeito, de cumplicidade. Transição do dia pra noite. Com a cabeça encostada no peito dele, entreabriu os olhos e viu o que tinha nas mãos. Imediatamente sua boca se abriu em completa admiração, com um ligeiro suspiro. Sentia o sacolejo, a plenitude, o silêncio que antecede a glória. E num rompante, deixou sua cabeça escorregar peito abaixo e...PIMBA! Sim. Isso mesmo. Ela caiu de boca no pinto do rapaz. Sem lhe dizer uma só palavra. O rapaz, receoso, olhou para os lados e sem acreditar no que acontecia. Ergueu o braço esquerdo, passou a mão no cabelo e depois puxou a alavanca para descer sua poltrona. Ane, no embalo do sacolejo, ali ficou durante o restante da viagem. Estava em seu playground preferido.

Na chegada a Bertioga os dois desceram, ainda em silêncio. Retiraram suas bagagens e, ali mesmo, em pé, no terminal de desembarque, tentavam mais uma vez iniciar um diálogo inútil: “viagem rápida, né?“ ou “você pega sempre esse ônibus?”. Mas o silêncio prevaleceu de novo. Só que dessa vez com os dois se olhando nos olhos, profundamente. Mistura de vergonha com sorriso. De timidez com promiscuidade. Ane então, num rompante, quebra a imobilidade. Abre sua bolsa, saca um pedaço de papel cor-de-rosa, uma caneta, e começa a escrever algo. Faz uma pausa dramática, olha para o rapaz, e dá uma tremenda gargalhada de se ouvir em todo o terminal rodoviário. Termina o bilhete, olha nos olhos do rapaz e diz, com um sorriso bem sem vergonha: “Oi! Meu nome é Ane e eu adoro viajar pra Bertioga!”. O rapaz esboça uma resposta, mas ela lhe dá as costas rapidamente e vai embora. Enquanto Ane sumia no meio da multidão, ele pensava, de boca aberta, na loucura que acabara de viver. Havia sido a viagem mais atípica e prazerosa da sua vida. Mal acreditava que a veria novamente. Respirou fundo, sorriu levemente. Não era só prazer. Era amor. Amor verdadeiro, daqueles de alma!  Foi então checar o bilhete. Quando o abriu, o sorriso encolheu: não havia telefone, tão pouco endereço. Apenas um singelo coração desenhado, com uma marcação dentro: 29º.


domingo, 10 de agosto de 2014

Salve 6 e 16 de Julho

Hoje, segundo domingo de agosto de 2014, devo reverenciar outras datas. Em um 6 de julho de anos atrás a cegonha trouxe ao mundo o meu pai. E há 3 semanas, em 16 de julho,  a mesma cegonha (acompanhada pelo ET) trouxe também o meu filho Gabriel.

Meu pai é funcho, feijão sem bicho. Veio dos confins da pacata Buenópolis, e Curumataí, no norte de Minas. Nasceu pelado e hoje está vestido. Desceu pra Curvelo (ou Corinto, nunca sei muito bem), Sete Lagoas, desbravou Vespasiano e repousou em berço esplêndido na bela Lagoa Santa, sua terra desde que me entendo por gente. Serviu à aeronáutica por 8 anos, ficou preso 1 dia por causa da revolução, já trabalhou em açougue, ciscou de cá e de lá, tocou sax na banda da cidade, foi um talentoso canhoto na ponta esquerda do clube de Sete Lagoas, aprendeu a dar 500 toques por minuto na máquina de escrever, sem errar! Viu a máquina de fax chegar ao Brasil como a grande inovação do ano e ajudou a Cemig a crescer com mais de 30 anos de trabalho duro. Também se formou em direito, sem perder uma aula sequer, e foi o primeiro Presidente da OAB na Subseção de Lagoa Santa. Cumpriu 2 mandatos com maestria e excelência. Hoje figura como grande saxofonista desse Brasilzão. Escrever fatos sobre meu herói é simples. Difícil mesmo é dizer o Pai que ele foi, e sempre será pra mim.

Ele é casca grossa. Sempre foi. Me ensinou a valorizar o que tenho e a ter garra para batalhar pelo que quero. Com ele aprendi a comer salada antes do prato principal, a cumprimentar e me despedir das pessoas em todas as vezes que chego ou saio de um lugar. Me ensinou o que é honestidade, e que nesse mundo nada se consegue de graça. Quando eu nasci com meus pés tortos, necessitando de um tratamento especial para poder andar, ele teve que vender o seu fusca para não ser obrigado a trancar a faculdade de direito. E a vida deu voltas e esse mesmo fusca está hoje na garagem da nossa casa. Não acredito em coincidências. Acho que a vida nos dá de volta o que damos a ela. E com certeza meu Pai recebeu sempre o que ele deu de bom pro mundo, sobretudo para os filhos. Talvez hoje eu esteja começando a entender o 6 de julho, por causa do 16 de julho.

El...El...El...Gabriel...E ele veio. Como diria o poeta: “a vida não pede licença, nem muito menos desculpa.”. A vida simplesmente acontece. Quem sou eu para dizer o contrário? E ele chegou. Um feijão sem bicho, como o avô. Jamais poderia imaginar que meu dia dos pais de 2014 eu seria um dos protagonistas do dia. Acordei diferente. Como tenho acordado em todos os dias desde 16 de julho passado. Gabriel repousou em meu colo pela manhã. Cochilamos juntos, ainda na cama. Depois troquei sua fralda e o trouxe para a sala. Ficamos escutando vinil juntos. Comecei a lhe mostrar uma das melhores coisas do mundo: a música. Ele ouviu atentamente, e sorriu muito em Don’t Let Me Down dos Beatles. Tomei café o observando e mergulhando nos seus olhos profundos. Olhos de quem está começando e ver nosso mundo. Cheio de mazelas, é verdade. Mas extremamente excitante de se viver. Sei que ele vai tropeçar, aprender e se decepcionar com esse mundo cada vez mais maluco. Mas também tenho a certeza de que vai adorá-lo e aproveita-lo em cada momento, cada instante. Ele vai ser o grande autor de uma linda obra, que será sua própria vida. Eu, como protagonista de hoje, estarei sempre por perto. Não só como um grande apoiador e incentivador, mas também como o principal espectador. Tudo que aprendi com o 6 de julho será usado no 16, e vice-versa. Sinto uma conexão muito pura com ele. Algo mágico, eterno e muito belo.


Sigo assim. Vivendo todos os dias com o amor de “6 de julho”. Agora ainda mais forte com o “16 de julho”. Pai, te amo. A você só tenho que mostrar minha eterna gratidão. Filho, você ainda não lê. Mas não importa. A gente se entende de outra forma. E vê se cresce logo pra gente andar de bicicleta...



terça-feira, 8 de julho de 2014

Em um espetáculo, a quem pertence o choro?

Uma máxima do teatro que vale pra nossa Seleção: "Em um espetáculo quem deve chorar é a platéia, não o artista.". O mesmo digo para o nosso time: o torcedor é quem tem que chorar, não o jogador. 

Explico: de nada adianta um ator chorão em cena. Além de perder o controle da sua criação artística, sua emoção vai ficar ali, estagnada. Não haverá troca com a platéia, que pode até chorar, mas de agonia! 

Sim. O hino deixa os jogadores como manteiga. Mas vamos jogar futebol? Verde e amarelo, torcida cantando em capela. Tudo é muito lindo e emocionante, mas existe um trabalho a ser feio ali, dentro das 4 linhas. Marcar firme, criar jogadas, ir pra cima dos zagueiros. Os laterais poderiam defender, cruzar melhor. O meio pode, além de desarmar, armar também! O centro avante poderia chutar mais à gol, ou dar lugar pra mais um ponta veloz, que vai pra cima. E o choro contra a excelência alemã pode não fazer bem!

Com os jogadores chorando menos e jogando mais futebol de verdade, com garra e técnica, como deve ser uma Seleção Brasileira, não tenho dúvidas que o choro ficará do lado correto: na torcida. 

                      


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

SAC vs UFC


        Sistema SAC: Stones, Amigos e Cerveja. Combinação perfeita. Eu realmente precisava disso. A mistura parece simples, só que não. Cerveja é fácil, mas ter grandes amigos por perto e um som ao vivo de qualidade, às vezes nem tanto.
O hilário foi ter um elemento adicional aos ingredientes: UFC. Após executar “Miss You”, o vocalista da banda cover anunciou: “galera, daqui a pouco a gente para pra ver o Anderson Silva”. Como se fosse Galvão promovendo uma final de Copa: “é o Brasil em campo, amigo!”. Nessa hora me dei conta que todo o pub estava focado nas lutas preliminares da tal luta principal. Todos no aquecimento para o grande momento. Tocamos o foda-se e continuamos nossa festa particular. “Honky Tonk Women”, “Brown Sugar”, “Start me up” e cia. Então chega de alegria. É hora da luta, a atração da noite. O país do futebol parou a festa, o rock n´ roll ao vivo dentro de um pub, pra ver o sangue jorrar no ringue, que é chamado de octógono. Inclusive vai aqui uma proposta pra turma do Boxy: aposentar a palavra “ringue” e a partir de agora usar “quadrado”.
Ok. Sem música, vamos beber mais uma cerveja no balcão e decidir o que fazer. Deu tempo de tirar a cartela, fazer o pedido, receber a caneca, tomar o primeiro gole e - pimba: canela quebrada. Sou daqueles sujeitos que pregam respeito com a natureza, o mar. Acho que o jogador de futebol tem que respeitar muito o campo de jogo, assim como um artista deve fazer com o palco. O Anderson já havia desrespeitado muito o lutador americano. E como diria Murcy Ramalho, “a bola pune”. Neste caso “o ringue (ou octógono) pune” também. Melhoras pra ele.
       Mas será que nessa conta entrou a interrupção inconveniente do SAC? Isso não se faz. Com isso não se brinca. Sim. Eu sei. É apenas rock n´ roll, amigos e cerveja. Mas eu gosto!

       



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O Caos Celestial

     “Deus te abençoe e vá em paz, meu filho”, disse ao cristão da vez, pegando em suas mãos. Era missa das 9h de um quente e ensolarado domingo. O padre estava no altar recebendo seus cristãos, dando a benção do dia. Débora estava na na fila e foi se aproximando. Havia 5 ou 6 pessoas na sua frente. Nesse momento o padre já sentiu que havia algo diferente, uma energia com a qual não estava habituado a lidar. “Deus te abençoe e vá em paz, meu filho”, disse ao próximo da fila. Mas desta vez não o olhou nos olhos como de costume. Seu olhar foi para o horizonte da quente paróquia. Era o impulso daquela energia que pairava na atmosfera. Não conseguiu identificar nada anormal e seguiu: “Deus te abençoe e vá em paz, meu filho”, já mais displicente. A energia foi aumentando cada vez mais. Débora era a próxima. Ela caminhou ao encontro do padre com um pequeno sorriso, daqueles de canto de boca. Estava com as mãos juntas, com o pescoço levemente inclinado pra direita, fazendo com que seu olhar estivesse um pouco pra cima. Suas sobrancelhas finas ficaram um pouco para cima e seus cabelos loiros se misturavam com sua mini blusa vermelha, um sutiã branco de rendinha por baixo e os traços de seus seios.
     Naquele momento ele sentiu a tal energia que o perturbava. Parou o movimento constante das bênçãos de forma repentina, como se máquinas de produção em série da revolução industrial tivessem enguiçado no meio do expediente. Mas seu olhar não foi para os olhos dela, e sim para a ponta de seus cabelos loiros jogados na blusinha vermelha, no sutiã branco de rendinhas e nos traços dos seios. Sem perceber os detalhes, ele viu o conjunto da obra. Era como se estivesse contemplando A Noite Estrelada de Van Gogh na sua mais completa grandeza. Tudo ficou em câmera lenta, o tempo parou. Ele viveu cada milésimo daquele momento. Ela estava apenas a três passos dele. E caminhou de forma natural na sua direção para ter a benção como os outros cristãos. Mas pra ele tudo era diferente. Não era uma cristã qualquer. Tinha uma força, um impulso natural e igualmente misterioso. Cada um de seus três passos foram marcados. A Noite Estrelada brilhava, se agitava. O vermelho da blusinha se misturava com as rendinhas brancas, com o cabelo loiro e a pele clara. Os seios balançavam de forma suave e discreta, ampliando o movimento, em plena harmonia com os passos. De repente ela parou na sua frente e seus seios se puseram quietos. Ela passou a língua em seus lábios pequenos para umedecê-los e disse espontaneamente, baixando levemente o queixo no meio da frase: “sua benção, padre.”. No mesmo momento ele, que estava no degrau do altar, completamente mergulhado na contemplação daquela “noite”, levantou os olhos diretamente para os olhos dela, que pareciam estar ali já esperando tal movimento. Não houve nenhum chacoalho de cabeça ou algo como cachorro molhado depois do banho, nada que o mostrasse bestalhão. Foi um olhar preciso e objetivo. Firme. Mas não veio acompanhado de sua mão, que normalmente pede a mão do cristão para a tradicional benção. Débora não tinha nada de mulher fatal. Era simples, natural. Tinha uma espécie de doçura apimentada. 
     Apesar de ter saído daquele estado de transe ele ainda estava envolvido pela energia dela. Mas agora de forma mais consciente. Era como se estivesse, de uma certa maneira, percebendo seu inconsistente e tentando controla-lo. Seu coração batia cada vez mais forte. Talvez fosse o momento mais desconfortável de sua vida e, ao mesmo tempo, o melhor de toda ela. Pois estava em um terreno que nunca pisara. Ele então, ainda olhando para os olhos dela, titubeou e estendeu suas mãos, pedindo as mãos dela para abençoá-la. Ela ainda com um sutil sorriso de canto de boca, levantou levemente a sobrancelha esquerda. Nesse momento ele respirou fundo. Sentiu o vento do ventilador de parede da paróquia, ligado no modo rotativo, passar por ali. Parecia que acessava mais o seu inconsciente, descobrindo coisas novas sobre si. Sensações que o assustavam, mas de alguma forma eram boas. Ele respirou fundo novamente, o ventilador fez o caminho de volta, sentiu o vento refrescando o seu rosto, e então abaixou o olhar lentamente na direção das mãos dela. Neste percurso contemplou novamente aquelas cabelos loiros em cima da blusinha vermelha, que tinha por baixo um sutiã de rendinha branco. Mas agora não era mais o conjunto. No alto do degrau a visão da Noite Estrelada era diferente. Agora ele tinha o detalhe. Olhou profundamente o encontro dos seios dela. Viu os traços, o caminho de dois rios que se juntavam, e sumiam numa escuridão tentadora. Era o verdadeiro caos celestial. 
     Enquanto aproveitava cada milésimo daquele momento conscientemente, se encontrava mais com seu inconsciente. Vibrações, movimentos, desejos e coloridos que pareciam ser de outra esfera. Pela primeira vez em toda a sua vida sentiu de verdade a força do instinto humano. Viu de perto suas sombras, suas cobras. Estava navegando em mares nunca antes desbravados. Apreciava cada detalhe, cada sensação. Cabelos loiros, blusinha vermelha, sutiã branco de rendinhas contornando os seios. Quando sentiu um toque em suas mãos. Eram as mãos dela. Ele as apertou imediatamente com firmeza. Direcionou novamente os olhos para os dela e finalmente disse sem pestanejar: “Deus te abençoe e vá em paz”. Sem o tradicional “minha filha” no fim da frase. Ela manteve o sorriso de canto e boca e saiu. Num golpe cruel do seu instinto ali aflorado, ele se curvou para olhá-la de costas, ver seu caminhar de calça jeans escura, talvez rebolando, ou apenas se mexendo de forma natural com seus passos. Antes de se virar por completo cerrou os olhos com força, respirou fundo. Sabia que este olhar seria a consagração de um grande pecado cometido na frente de seus cristãos. Por mais discreto que fosse não iria se perdoar por tal ato. Mas o impulso de seu instinto era muito forte. Ainda de olhos fechados, sua mandíbula enrijecida provocava mais uma gota de suor no canto da sua testa. Muito confuso com tudo que passara, escutou uma voz a sua frente dizer: “Padre, queria muito a sua benção.”. Era um menino, de mais ou menos 15 anos, paraplégico. Repentinamente o padre abriu os olhos, os arregalou e disse meio esbaforido: “Deus te abençoe, meu filho. Que Deus te dê muitas bênçãos”.
         
           

           

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Padre João Batista


Onde é a urna? Eu voto nele. Pe. João Batista pra Papa. Se tem alguém nesse mundo que faz a igreja católica ter sentido é ele. Aquele que tem lâmpadas nos olhos. Quando era criança, menino novo, fiz curso de catecismo. Depois também o de crisma. Vim de uma tradicional família mineira, extremamente católica. Tinha que ir à missa das 19hs aos domingos, por que nunca ia na das 7 da madrugada, tão pouco na das 9hs. Era criança peralta. Queria jogar bola e brincar de pegadô na Cadivô, ou na ZecaLândia, como inovou Batista no seu sermão do último domingo.

Tenho uma pequena forte lembrança destes tempos de criança. Era dia de Galo x Botagofo, as 19hs de um domingo. Tive que ir à missa! A implacável Dona Cecília puxou o relatório de ponto daquele dia e viu que eu não tinha marcado presença pela manhã. Daí a casa caiu...Tive que largar tudo e ir à missa. Mas não me aguentada na igreja. Só pensava no Galo, e nos primos brincando, e depois no Galo de novo. Quando cheguei à Cadivó vi que o Carijó tinha perdido o jogo de 2 pts do Brasileirão. E pensei com peso na consciência: "poxa vida. Perdi o sermão do João Batista e meu Galo perdeu...". O tempo passava e eu crescia. Aos 15, 16, já tinha bacharelado e especialização nos quesitos católicos: batizado, 1a comunhão e crisma. A última teve uma etapa interessante em um retiro no colégio Dom Bosco, nas redondezas de Barbacena. Eu e meu primo Eduardo "tocamos o terror" na “concentração”. Subimos no telhado do colégio, acordamos os colegas, batemos nas portas diversas e tudo mais. Mas sem fanfarras em excesso. Tudo dentro dos limites, pois era um RETIRO. No café da manhã ouvimos os padres comentando amigavelmente sobre possíveis "gatos pretos" andando pelos telhados na madrugada. E haja coração para as palestras mil! Foi uma pescaria só. Sono. Muito sono! Mas no final foi divertido. Naquela idade não tinha muita oportunidade de viajar no fim de semana com amigos.

Após este período me afastei da Igreja Católica de forma natural. Vieram as viagens da escolinha do Tony, depois a faculdade, carnavais, a famosa boemia, trabalho de gente grande, responsabilidades, e por aí vai. Sempre fui respeitoso às religiões diversas, apesar de achar que não deveria existir nenhuma delas. Do período “pós-crisma” até aqui, minha relação com o catolicismo se resumiu à presenças em casamentos, batizados, momentos especiais, familiares. Digo isso em relação às missas, pois mesmo não sendo praticante, amo uma igreja católica vazia! Silêncio. Pé direito imenso. Imagens bonitas. Paz. Frequentei por muito tempo a da rua Espírito Santo com Afonso Pena, no centro de BH. Sempre que possível ia lá. Nos intervalos do turbulento cotidiano da telefonia. Tiradentes, Cusco, Ouro Preto, praça da Sé. A igreja que mais gosto é a de Trancoso, no quadrado. Ali é sagrado pra mim! Independente do que é dito nas missas e sermões, ou do que foi feito na inquisição, encontro paz em uma igreja vazia. Conecto comigo, com meus anjos, com meu Deus, com os espíritos de bem. Renovo minha fé, minha cultura. Sinto a energia dos meus avós. Colo os meus pés de ventosa no chão. Respiro com a certeza de quem eu sou, de onde eu vim e pra onde vou. Pratico minha gratidão. Em uma cidade grande é sempre bom ter uma igreja vazia para entrar e ouvir sua própria respiração. Faz bem pra alma!

Mas no último domingo entrei em uma igreja cheia, e em grande estilo. Celebração de 60 anos de casamento dos meus avós. Seu Zeca e Dona Cecília. No quinto passo eu já estava chorando como uma criança. Entramos todos os primos, netos, depois os bisnetos, crias diretas, agregados, etc. Não necessariamente nessa ordem. Nada de cerimonial. Tudo "à moda Viana". Em seguida o casal sessentão. Coisa mais linda de se ver. Amor. Muito amor. Uma família às vezes Buscapé, outras Corleone, parecendo ter sangue italiano nas veias, mas sempre ancorados no amor plantado por Zeca&Cecília. Quando começou a cerimônia, me dei conta que a mesma seria liderada pelo Pe. João Batista, aquele que eu gostava no período “pré-crisma”. E no mar de alegria da família Viana, na simples, pequena e simpática capela dos Angicos, havia outra família que acabara de perder uma pessoa. Ana Márcia deixou filhas...Era a profunda tragédia humana ao lado da alegria transbordada. Lado a lado, a vida e a morte. “Assim como é nossa vida”, explicou João. Como é culto! Tem sensibilidade. Soube celebrar a alegria de uma família e acolher a dor de outra no mesmo momento, no mesmo lugar. Além disso, nos contou o óbvio ululante, que nos negamos a enxergar: “o mundo moderno criou as novelas que roubaram nosso maior poder, o de imaginar”, disse João Batista. Depois de abençoar Zeca&Cecília, se dirigiu à família de Ana Márcia para dar também sua benção. João me fez voar, transcender. Mesmo sendo católico não praticante. Mas quem disse que tudo aquilo tem a ver com o catolicismo? O amor de 60 anos, a tragédia de uma família, as sábias palavras de um Padre, o pranto de dor ao lado do meu choro de emoção, tudo isso faz para de VIDA. Não de uma religião. É esta compreensão que o mundo precisa. Por um acaso aquelas histórias convergiam em um templo católico e ali reinava a compaixão, a celebração, o respeito da alegria para com a dor e vice-versa. E assim deveria ser em todas as esferas da vida, entre tribos e religiões diversas.

Mesmo tendo esta trajetória recente de distanciamento dos rituais católicos, ainda preservo hábitos milenares de tal religião. Sinal da cruz obrigatório sempre que passo em frente a uma igreja católica. Já tentei passar reto, fingir que não vi, pensar na oposição ao uso da camisinha, na inquisição, em frango com quiabo, sei lá! Mas não tem jeito. Fico inquieto até executar o ritual do sinal. Se eu morasse em Salvador poderia ter que fazer isso 365 vezes ao dia e pegar uma LER. Assim faço também antes das refeições, antes de sair de casa, de começar o dia. Ato mais consciente, uma prece por proteção, para demonstrar gratidão. Já é independente da religião. No carro o gesto é acompanhado de um leve toque em meu tercinho dependurado no retrovisor. Minha mãe que me deu de presente. De 11 crias da Zecolândia ela foi a primeira. Também a primeira a se casar na Igreja e também a se separar. Ela ganhou o tal tercinho de sua irmã, minha Bia Tia, que tem mais de 25 anos de casada. Bia trouxe o artigo do Vaticano. Sim! Do lugar pra onde João Batista deveria ir. Já tem meu voto pra ser o Papa dessa humanidade, a autoridade maior. Para que o mundo possa escutar o que escutei no domingo, e muito mais que é possível ouvir nas suas celebrações atuais ou ler nos seus livros publicados. Mas pensando bem, vou cometer aqui o pecado do egoísmo: Melhor mesmo que ele fique por perto. Pois se ainda existe um ser humano que faz ter sentido a ocupação dos ecos, do vazio tranquilizante e acolhedor de uma Igreja Católica, esse atende pelo nome João Batista Libanio, o nosso Padre Libanio, da paróquia N.Sra de Lourdes, lá de Vespasiano, Minas Gerais.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Meu texto foi escolhido...

...entre 348 enviados! Sobre Seleção Brasileira e times de coração.
Independente pra qual time o leitor torça, acredito que a identificação será grande.
Abaixo a publicação oficial no blog do Cosme e também do texto na íntegra.

blog do Cosme Rimole no R7:
http://esportes.r7.com/blogs/cosme-rimoli/2012/10/03/foram-348-respostas-um-atleticano-e-um-cruzeirense-conseguiram-resumir-muito-bem-o-que-o-torcedor-pensa-da-atual-selecao-brasileira-ainda-mais-diante-de-uma-partida-contra-o-seu-time-de-coracao-o-p/

Texto:

Ok. Meu pai viu o Tri, a antológica Seleção de 70. Mas ficou na geladeira um bom tempo...Mesmo sem ter vivido tais tempos áureos, me considero um privilegiado.
Minha primeira recordação de Copa foi o gol do Caniggia em 90. Mas vivi Romário e Ronaldo no topo. Em 6 Copas, vi o Brasil em 3 finais. Nada mal. Mas o aproveitamento não foi mais que 50% por pura incompetência de quem está à frente do nosso futebol. Parreira permitiu a fanfarra em 2006. E escolheram o Dunga, que nunca havia treinado nenhum time em toda a sua vida, para ir à Copa buscar o exa. O bom e velho Dunga, que me fez perder a voz em 94...Ninguém assume a presidência de uma empresa sem ter mostrado resultado ao longo da carreira.
Mas no futebol do Brasil é assim. Tanto que temos um treinador bi-campeão da segundona para liderar nosso time na Copa que vamos jogar em casa. Por que? Porque ele é "peixe" do diretor de Seleções, que é "peixe" do ex-presidente da CBF, que estava lá há anos. Os novos comandantes nada mais são que políticos de outra cúpula. Sem pulso e sem visão, deixam o barco navegar rumo à queda d´agua... Além do amadorismo que parece não ter fim, considero a Copa 2014 o apogeu da corrupção. Os países de 1o mundo usam suas potências para alavancar suas economias. Nós usamos o futebol para retardar nosso crescimento. Bilhões ao lixo...12 arenas para simbolizar a corrupção...Elefantes brancos serão pontos turísticos em ruínas, daqui a 100 anos...Uma espécie de Coliseu da corrupção.
Em 2007, meu pai foi sábio na seguinte frase: "Vão fazer a Copa aqui? Ninguém vai falar nada contra na mídia. Porque todo mundo vai ganhar com a roubalheira...". Na minha inocência, acreditava em um país melhor. Mas acabei ficando até sem time em campo pra torcer...
Respondendo à pergunta: Meu time é o Galo. Já venceu a Seleção brasileira. Aquela de Pelé. Foi no Mineirão, por 2x1. Acho que hoje venceria novamente, já que a fase é boa e até a África do Sul está tirando casquinha. E eu iria ao jogo pintado de preto e branco pra arquibancada, para uma luta simbólica contra um time "em formação", liderado por amadores e despreparados. Gritaria até perder a voz, como fiz pelo próprio Brasil em 94, 98 e 2002. Mas com outros versos: "Clube Atlético Mineiro, Galo forte e VINGADOR!".